Enxugar gelo e a arte de defender culpados

Posted on 24 de janeiro de 2018

“Enxugar gelo” é uma expressão popular que remete a insistência de um indivíduo em uma tarefa repetitiva e inútil, que não oferece retorno ou é inviável. Isso porque, no sentido literal, o ato de enxugar gelo consiste em uma situação de esforços improdutivos – e, muitas vezes, ridícula.

Ao longo de nossas vidas, não é incomum nos encontrarmos em certas situações em que estamos no papel de “enxugar gelo”: realizar um trabalho incessante, exaustivo e inútil. Só quem já passou por uma situação dessas sabe do que estou falando. E fica ainda pior quando não se tem noção do que está acontecendo e até onde chegará, já que aí, além dos esforços sem retorno, nos resta ainda o papel de tolo.

Nos últimos 15 anos, enxugar gelo tem sido uma tarefa cada vez mais praticada no Brasil, graças ao avanço das investigações da operação Lava Jato e outras iniciativas de combate a corrupção. Atravessamos um momento em nosso cenário político onde centenas de empresários, políticos e outras figuras públicas – responsáveis pelos motores de nosso país – foram presos ou estão sendo investigados por lavagem de dinheiro, corrupção passiva, desvios de verba e outros crimes envolvendo dinheiro público. Com tantas prisões e condenações, é natural que certos profissionais precisem assumir o posto de “enxugadores de gelo” – ou seja, o papel de defensores e advogados de réus incontestavelmente culpados ou mesmo confessos.

O árduo trabalho desses profissionais consiste em criar narrativas, que na maioria das vezes beira o absurdo e a bizarrice, que inocentem ou, no mínimo, coloquem em dúvida o nível de culpabilidade desses réus nos processos e acusações que respondem. E, na chamada “era da informação”, a opinião pública é peça-chave para o sucesso da defesa – por isso, além de construírem narrativas que façam sentido para o júri e também para a opinião pública em geral, é preciso fazer com que a história circule suficientemente até que, por mais absurda que pareça, ela consiga alcançar um mínimo de veracidade, o bastante para gerar engajamento das pessoas – capazes de pressionar o poder público e influenciarem nas sentenças do Judiciário.

Esse movimento pode ser constatado por meio de uma rápida pesquisa nas redes sociais. As narrativas construídas pelas defesas dos réus despertam emoções das mais intensas na opinião pública, dividindo-a entre aqueles que defendem cegamente os acusados e aqueles que, da mesma forma cega e emotiva, os crucificam. Embora este cenário seja positivo tanto para o encontro de possíveis injustiças cometidas durante os julgamentos, quanto para a cobrança de uma pena à altura dos crimes, ele muitas vezes é prejudicial por inviabilizar o diálogo e acabar interferindo negativamente os processos da Justiça. Mas, é no meio desse mar de discussões acaloradas que podemos enxergar a concretude da análise do mestre da propaganda Joseph Goebbels, (político alemão e Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945), que afirmava que “de tanto se repetir uma mentira, ela acaba se transformando em verdade”.

Por mais que essas situações pareçam exaustivas, inférteis e um tanto quanto caóticas, esses profissionais assumem essa responsabilidade tanto por uma obrigatoriedade da Constituição – que prevê o direito ao contraditório e à ampla defesa – quanto pelas fortunas em honorários pagas pelos réus, muitas vezes dinheiro fruto da rapinagem. Isso é, de fato, um direito humano e é obrigação da Justiça conceder o benefício da dúvida a todo e qualquer réu.

Mas, para que a Justiça seja feita, é preciso pensarmos estrategicamente: doa a quem doer, aos apaixonados por uma causa ou partido ou aos militantes que saem às ruas em defesa de suas respectivas ideologias, os culpados devem pagar pelos seus crimes. Enquanto a mentira pode acalmar os ânimos da sociedade ou mascarar esquemas milionários de corrupção em nome da “estabilidade política e econômica”, somente por meio da verdade e valores como a honestidade podemos construir um país melhor para nossos filhos e netos. A Justiça deve ser feita não apenas em nome da moral, mas como forma pedagógica, contribuindo para a educação e a evolução cultural de nossa sociedade.


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